Como Mudar a História
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Ao começar o século dezenove, o mundo tinha muito que aprender. Os Estados Unidos da América do Norte haviam tido sua contenda com a Grã-Bretanha e estavam a ponto de se converter numa nação. O continente europeu se punha de pé, cambaleante, depois de outra daninha e esgotante luta consigo mesmo, não diferente da que tivera lugar por séculos. As nações do Leste (sendo Rússia o grande símbolo) ainda preocupavam ao Oeste, como tinha ocorrido desde que os territórios das religiões russas tinham livrado a Batalha de Tours no ano 732 e as hordas mongólicas tinham baixado do norte para tratar de tomar a Terra Santa das mãos dos cristãos.
Ainda que os anos entre 1800 e 1900 fossem um tempo de estabilização, também seriam de mudança e incerteza, uma dicotomia que não é rara na história. Todos os valores políticos, religiosos, e sociais seriam re-examinados, e em muitos níveis, descartados. Na política norte-americana, surgiria o sistema bipartidário, e os territórios que teriam de converter-se em estados começariam a copiar alguma forma de nacionalismo. As personalidades deixariam suas impressões nas leis nacionais e locais, bem como no marco político. A Guerra Civil debilitaria e, no entanto, uniria, a uma nação. As nações européias continuariam lutando por sua identidade e pelo poder.
A expansão do Oeste norte-americano trouxe grandes mudanças nos valores. A terra e o individualismo se converteram em considerações importantes na vida das pessoas. Pela primeira vez, a propriedade esteve disponível para muitos. As coisas, muitas coisas, fizeram-se desejáveis. A vida e o progresso que para muitos (por quase um milênio) mal tinham parecido desejáveis, e, para a maioria (no resto do mundo), dificilmente obtidas, agora estavam nas douradas praias da nova terra e pareciam estar ao alcance dos que trabalhassem e se esforçassem por obtê-las. A oportunidade, uma palavra mal reconhecida na maior parte do mundo, parecia ter chegado.
Em religião, o começo do século, desde a década de 1820 até a de 1850, teria de presenciar uma das últimas tragadas do antigo drama de temor e fogo do inferno em nome de Deus e do céu. O tema, que tinha sido representado nos palcos da Europa tanto por católicos como por protestantes, saltou ao outro lado dos mares e se converteu num fenômeno americano no movimento Millerista. A antiga canção de que “todos querem ir ao céu, mas ninguém quer morrer,” nova somente em alguns de seus detalhes, voltou a ser tocada para benefício dos temerosos e os que se sentiam culpados Mas há que se morrer, diziam William Miller e seus seguidores, e até fixaram o momento do acontecimento. Depois de muito trabalhar com as calculadoras celestiais, fixaram a data de 22 de Outubro de 1844 para o acontecimento (salvo quaisquer complicações sérias, talvez).
Foi um grande drama, aquele movimento Millerista, em que cada um dos grupos de atores gravitava fortemente ora para um lado do palco, ora para o outro, afirmando cada um deles que tinha a Deus de seu lado. Alguém teria que pagar bom dinheiro para ver um espetáculo assim em qualquer outra parte e em qualquer outro momento. Mas nos Estados Unidos era grátis. Incluía personalidades, pessoas, ocupações, sermões, diatribes, invectivas, recriminações, ataques, e contra-ataques – de fato, uma verdadeira guerra santa, tudo em nome de Deus. Lendo acerca daqueles dias, alguém se pergunta se o verdadeiro tema em discussão não era o mesmo que sempre parece existir em religião: Quem vai controlar as concessões aqui e no além?
Não se precisou muito tempo para que um grupo comprasse a franquia. Aquilo pelo qual católicos e protestantes haviam lutado na Europa por séculos, um grupo de restantes do movimento Millerista decidiu mercadejar nos Estados Unidos. A princípio, não se pensou num movimento mundial. Mas, se o produto se vendia, o mundo seria sua ostra e o céu seu gueto. Eles teriam de ser os Adventistas; o sétimo dia seria seu estandarte, e o Segundo Advento sua canção, ambas as idéias o produto usado do movimento Millerista.
Não tinha realmente nada novo nem no estandarte nem na canção. Os hebreus da Antigüidade tinham sustentado o sétimo dia através do Antigo Testamento. Os cristãos do Novo Testamento lhe tinham prestado algum atendimento e adesão verbal à Segunda Vinda desde os dias de Cristo. Mas os nomes e as datas e os lugares seriam mudados para proteger aos culpados. Nas mentes de Ellen White (a dirigente psíquica do movimento Adventista) e de seus seguidores, surgiu a prática de interpretar as Escrituras (passadas, presentes, e futuras) em termos de conceitos e crenças Adventistas. Esta não era uma idéia nova, mas se enquadrava nos tempos do século dezenove. Os antigos hebreus tinham promovido a idéia de que eles eram os depositários dos oráculos de Deus (e há quem ainda creia que o são). Os católicos, nos tempos do Novo Testamento, e depois, trabalharam para aperfeiçoar essa idéia judaica e fazer do catolicismo o custodiador de toda verdade, ainda que tivessem que encadear parte dela a uma parede. Agora, na metade do século dezenove, tocou-lhes o turno aos Adventistas.
Para que qualquer grupo ou organização convença a outros da idéia de que a eles lhes foi dada a concessão para o além, que eles são em verdade aqueles a quem Deus escolheu para vender as indulgências para esta vida e a utopia vindoura, devem sempre abordar o trabalho de reordenar e realinhar os fatos da história, e reescrever o cânon (a Bíblia do "verdadeiro crente") de maneira que ambos estejam em harmonia com suas idéias preconcebidas, conceitos errados, e preconceitos, declarando, ao mesmo tempo, que o Livro Santo é a palavra final de autoridade. Pequena tarefa para qualquer um em qualquer tempo. Não há que se surpreender de que a idéia nunca prendeu realmente no mundo religioso por demasiado tempo, ainda que os que o tentaram merecem uma nota "A" por seu esforço.
Sem que a idéia do fracasso lhes passasse pela mente, os Adventistas atribuíram esta impressionante tarefa à pessoa a quem gostavam chamar "a mais débil entre os débeis," Ellen Gould Harmon. Ellen nasceu como irmã gêmea em Gorham, Maine, em 26 de Novembro de 1827, filha de Robert e Eunice Harmon, membros ativos da Igreja Episcopal Metodista, e se casaria com Tiago White em 30 de Agosto de 1846, três meses antes de seu décimo nono aniversário.
Não tinha sinais antecipados de que ela teria de ser a jovem do povo que se sobreporia a sua deficiência. Não começou com fama nem com fortuna. Suas oportunidades de por o anel de bronze pareciam tênues, até que o infortúnio lhe sorriu. Quando tinha nove anos, ocorreu-lhe um acidente que, de acordo com ela mesma, "teria de afetar minha vida inteira." Como o apóstolo Paulo com seu problema dos olhos, Ellen, através do resto de sua vida, como freqüentemente se nos recorda, foi o produto de seu infortúnio físico. Sofria ataques de desmaios; seu sistema nervoso a prostrou; às vezes se rendia ao desespero ou ao desalento.
Depois de ter sido atingida com uma pedra na cabeça, lançada por uma colega de colégio, abandonou a escola e, como aos Adventistas gostam de contar, nunca teve educação além do terceiro grau. 2 O que deveria observar-se é que não teve uma educação formal além desse grau. Todos aprendemos ou somos educados enquanto desejemos sê-lo e sejamos conscientes, e há poucas provas de que Ellen não fosse consciente.
Aqui tinha uma oportunidade feita à medida. A história religiosa proporciona ampla evidência de que é muito mais provável que um "verdadeiro crente" aceite os ditados dos simples se a estes ditados de alguma maneira podem-se dar um marco celestial. Especialmente na Cristandade Ocidental, as crenças religiosas geralmente se centram nuns poucos temas: Todos os homens são criados (não necessariamente iguais – que é uma idéia política bastante nova); todos os homens são pecadores (e as mulheres também, que é outra idéia política bastante nova), ou o que seja que isso signifique. Dependendo da definição que o sistema dê ao pecado, a vida é uma viagem em bote através de um mar semeado de explosivos chamados tentações – geralmente definidos como mulheres (ou homens, segundo seja o caso), vinho, e canções. E ao cair a cortina, o homem tem que morrer.
Bem, isso é tudo, exceto que a emoção e a ação chegam quando os diferentes (sejam grupos ou indivíduos, organizações, ou bandas ambulantes) começam a traçar o plano de jogo e a preocupar-se pelos detalhes. Por exemplo, quem é o autor da criação, quanto tempo lhe tomou, quem esteve ali tomando notas, e quão verdadeiro é o registro do acontecimento? Quem nos salpicou a todos nós com o pecado? Foi Deus, ou essa serpente na erva, que chegou quando Adão estava no sul veraneando? Ou o obtivemos de nossos antepassados em passados remotos? Ou é o diabo, como Papai Noel, nosso pai?
A questão do pecado fascinou sempre a teólogos e não teólogos por igual. Para efeitos desta leitura, teólogos são os que praticam o definir a Deus ou julgam a ser Deus. Naturalmente, o que prepara a lista para outros tem vantagem no jogo. Através da história, a maioria dos místicos, adivinhos, ou teólogos tiveram oportunidade de confeccionar a lista dos pecados. Uma das maneiras mais seguras de fazer isto é deixar fora da lista as coisas das quais o indivíduo pessoalmente desfruta. Isto o fez a maioria dos que confeccionam listas prontas.
E, por último, o grupo ou organização deve abordar a questão final: Ao morrer, aonde vamos, e quando (antes, durante ou depois)? Ninguém encontrou ainda uma resposta satisfatória para estas perguntas. Já que é muito mais difícil regressar aqui, uma vez que alguém tenha ido ali em primeiro lugar. Ninguém regressou para dar um relatório anual do outro lado. Este fato, por si só, dá ampla liberdade de ação a alguém de mente fértil, imaginação e capacidade para descrever o horror ou a glória do além (por um preço). Pode-se dizer, sem receio de se equivocar, que o temor da viagem que ainda não empreendemos é uma arma poderosa nas mãos daqueles que, por algum meio, supostamente fizeram a viagem e regressaram para nos vender o caminho.
Ellen estaria à altura da tarefa. Eventualmente, deixaria para o crente (por meio dos conceitos Adventistas) informação, instruções, advertências e conselhos sobre todos os assuntos precedentes. Desde um começo trêmulo com a "amálgama entre seres humanos e animais" num de seus primeiros livros3, endereçou as coisas mais tarde com sua leitura de Paradise Lost. 4 Suas visões extracanônicas do diálogo, a batalha e a expulsão de Satanás e seus anjos, deu vividez e forma ao grande poema de John Milton, dos quais careciam até os escritores bíblicos. Alguns de seus amigos do começo notaram a similitude e chamaram seu atendimento sobre o assunto, mas ela subestimou a questão com a mesma facilidade com que fazia a maioria de suas críticas. Seu neto, que teria de herdar os deveres de custódia das chaves, deu quase a mesma explicação por mais de quarenta anos – com uma interessante exceção em seu suplemento de 1945 ao tomo quatro do livro The Spirit of Prophecy:
A Sra. White sempre tratou de evitar ser influenciada por outros. Pouco depois da visão de The Great Controversy (O Grande Conflito), de 14 de Março de 1858, em reuniões em Battle Creek durante um fim de semana, ela contou os pontos sobressalentes do que se lhe tinha mostrado nessa visão. O Ancião T. N. Andrews, que nesse tempo estava em Battle Creek, esteve muito interessado. Depois de uma das reuniões, disse-lhe a ela que algumas coisas que tinha dito se pareciam muito a um livro que ele tinha lido. Depois, perguntou-lhe se tinha lido Paradise Lost. Ela contestou que não. Ele lhe disse que ele cria que a ela lhe interessaria lê-lo.
Ellen White esqueceu a conversa, mas alguns dias mais tarde o Ancião Andrews chegou a casa com uma cópia de Paradise Lost e se a ofereceu a ela. Ela estava muito ocupada escrevendo a visão de The Great Controversy (O Grande Conflito) como se lhe tinha mostrado. Tomou o livro, sem saber mal que fazer com ele. Não o abriu, senão que o levou à cozinha e o pôs sobre uma estante alta, decidida a que, se tinha algo nesse livro que se parecesse ao que Deus lhe tinha mostrado em visão, não o leria senão até depois de ter escrito o que o Senhor lhe tinha revelado. É evidente que mais tarde leu, sim, pelo menos algumas porções de Paradise Lost, porque Há uma frase citada em Education (Educação). 5
O desvio a que nos referimos é a última oração na citação de seu neto – a aceitação de que ela tinha, sim, lido a obra de John Milton. A questão que parece ficar por resolver é se ela o leu antes ou depois de sua "visão" da mesma controvérsia. O motivo pelo qual pôs o livro sobre uma "estante alta" continua sendo motivo de perplexidade para muitos. Quiçá, pensou, que quanto mais alto, melhor – por causa da tentação. Quem sabe? Um escritor que estudou o problema da Sra. White e o livro Paradise Lost, de John Milton pode nos dar algumas respostas:
De excepcional importância é a correlação, que se encontra em certo número de ocasiões, em que ambos os autores descrevem com algum detalhe uma experiência que não se encontra na Bíblia. Entre tais eventos estão os seguintes:
1 . A cena no céu antes de e durante a rebelião, em que os anjos leais tratam de ganhar aos desafetos de volta à lealdade para Deus.
2 . As advertências a Eva para que permanecesse ao lado de seu esposo; o subseqüente afastamento.
3 . O complicado palco da própria tentação, com os argumentos de Satanás analisados ponto por ponto.
4 . A detalhada descrição dos imediatos resultados do pecado para Adão e Eva e para o mundo animal e vegetal ao redor deles.
5 . A explicação da razão básica da queda de Adão: Estava apaixonado por sua mulher.
6 . A narração a Adão, por parte do anjo, de eventos futuros.
7 . Os sentimentos tanto de Adão como de Eva ao abandonar o jardim.
Estas similitudes na narração a respeito de pontos sobre os quais as Escrituras guardam silêncio intensificam a pergunta: Por que concordam tanto sobre fatos principais estes dois autores, que viveram separados por duzentos anos? 6
Outros estudiosos do mesmo tema perguntaram, sem encontrar resposta, por que ambos os autores, separados por cerca de duzentos anos, escreveram estes mesmos relatos não bíblicos, ainda que a escritora posterior – Ellen G. White – afirme que não sabia nada da obra do anterior.
Um por um, Ellen White começou a acentuar em seus escritos (que ela invocava chegar por "visões") todos e cada um dos pontos da controvérsia teológica entre protestantes e católicos. Começando com o princípio de todos os princípios, e procedendo através do fim de todos os fins, ela deu uma nova, e com alarmantemente freqüência, inexata descrição do grande conflito como se apresenta na Bíblia.
Ainda que os crentes de todos os credos tenham estado um pouco confusos a respeito do grande conflito, ela o descreveu com tanta segurança que alguns engoliram sua versão. Sua descrição dos acontecimentos, suas expressões Eu vi, teriam de ficar tão indelevelmente impressas nas mentes de uns poucos que o futuro modelo do Adventismo foi estabelecido por gerações. Ao mesmo tempo, seu relato também fechava a porta que tinha sido aberta para que o Adventismo fizesse uma contribuição marcadamente diferente ao conceito mundial da religião. 7 E a porta continua fechada, porque a igreja do advento não pode passar além das interpretações do Cânon que faz a "Irmã White". Oficialmente, não se permite nenhum padrão de pensamento, nenhum surgimento de valores, nenhuma interpretação das Escrituras até ser ou primeiramente examinado, submetido à prova, ensaiado e depois tingido segundo a cor de Ellen G. White.
O mesmo poderia dizer-se dos Mórmons, com seu Joseph Smith, dos Cristãos Cientistas com sua Mary Baker Eddy, das Testemunhas de Jeová com seus Charles T. Russel e John F. Rutherford, dos Luteranos com seu Martinho Lutero, e de outros com seus santos padroeiros. Cada igreja vê o mundo a seu derredor, e o futuro além, através dos olhos de seu respectivo patrono. Se há um mundo ao redor deles no qual viver, ou um mundo que evitar, deve conformar-se à maneira em que seus santos o experimentam. Se há um céu que ganhar, ou um inferno que evitar, sua definição e sua direção, e até seus ocupantes, devem ser determinados
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